Dança
com Margarida Menezes
17 maio 19:00
Sinopse
“Para os amantes de ficção científica”
‘Se a quarentena fosse uma dança’, tal como a passagem do tempo emocional perante um potencial isolamento social perpétuo, o movimento seria a metáfora dos ideais e convicções que definem cada um levando a humanidade a priorizar a existência de cada indivíduo ou sua essência. O cenário seria uma ribeira, virtualmente brava, que constitui o habitat de várias outras espécies, algumas destas, colónias de extra-terrestres que vêm conquistar o planeta terra dissimulado de vírus. Uma frase coreográfica poderia ser a única salvação para comunicar através do movimento natural das aves intergalácticas, guardiãs deste planeta antes de ser nosso. Se precisar de sair de casa para lutar por mantimentos não atire a sua máscara para o chão com esperança de que sejam granadas destruidoras de vírus, pois existem evidências documentadas on line de que elas transmitem radiações que indicam a sua localização GPS ao inimigo. (Se não se identifica com a situação descrita neste parágrafo por favor leia a sinopse dirigidas aos crentes.)
“Para os obstinados crentes”
‘Se a quarentena fosse uma dança’, tal como a passagem do tempo no purgatório perante a penitência em isolamento social das almas arrependidas, a dança seria uma peregrinação espiritual pelo leito de uma ribeira brava que constitui o habitat de várias outras espécies que existem apenas para nos servir. Uma consagrada frase coreográfica poderia interagir com o movimento purgante das aves que ocupam o espaço paradisíaco. Esta acção poderia despoletar o Apocalipse coreográfico, acaso, como entre Cunningham e Deus, que dirige o movimento purificador das aves no seu habitat natural para resgatar a cultura dos homens. Uma colaboração artística entre divindades, em que o meu corpo e o corpo das aves são meros instrumentos de uma orquestra dirigida por dois maestros. Se a sua fé o leva a crer que a máscara que atirou ao chão será removida e esterilizada milagrosamente, por favor reserve os milagres de Deus para o acto de criação, para que produza almas mais sensatas. E já agora reze por mim. (Se não se identifica com a situação descrita neste parágrafo por favor leia a sinopse dirigidas aos que não acreditam em nada.)
“Para os cépticos, agnósticos e pragmáticos”
‘Se a quarentena fosse uma dança’ não estaríamos todos a reavaliar prioridades por motivos de força maior e obrigados a assistir ignobilmente à escolha de quem vive e quem morre, acelerando artificialmente o processo de selecção natural. Não poderia levar outro indivíduo a se questionar nem o indivíduo conformadoa apelar à pena de morte em surdina, omisso no gesto dos anárquicos civilizacionais que semeiam máscaras infectadas no alcatrão marinho. Este tornar-se-ia gradualmente desformatado da expressão fria e altamente estruturada, até ser levado a abandonar os principais parâmetros incontestáveis da economia e a optimizar a existência de cada indivíduo, propulsionado pelo instinto biológico que prevalece sobre toda e qualquer civilização quando em condições favoráveis. Se não se identifica com o indivíduo conformado por favor certifique-se de que a sua máscara não foi negligenciada e por culpa do vento é que foi parar ao chão. (Se a sua ciência não o permite acreditar em assumpções e medidas de protecção que hipoteticamente previnem a contaminação e alastramento da pandemia, deveria reflectir sobre se será na verdade um amante de ficção científica, e faça o favor de respeitar a fé dos outros pois a sua não é menos obstinada).
“Para os outros”
“Se a quarentena fosse uma dança” seguiria o concelho de Samuel Becket “Dance first, think later. It’s the natural order”.
Contextualização
O input para este projecto surgiu durante as caminhadas higiénicas diárias, a única forma possível de deslocação ao exterior desde que instauradas as medidas de prevenção profilática, devido à situação actual de pandemia. Foi rapidamente transformado num produto artístico graças ao desafio lançado pelo Teatro Municipal Baltasar Dias com o tema proposto: “Se a quarentena fosse uma dança…”. Este será explorado tendo como base as características nefastas da contaminação ao nível da psique humana. Pensamentos inibidos por emoções primitivas, devido ao isolamento e distanciamento social.
Uma das linhas intrínsecas da estrutura coreográfica é uma referência directa à peça coreográfica “Beach Birds” de Merce Cunningham. Não se trata de uma homenagem mas de um estudo que vacila entre o elogio e a crítica motivada pela ironia da rigidez das linhas dos movimentos, inerente à sua técnica, por oposição à metodologia do acaso e à colaboração multidisciplinar implementadas no seu processo criativo. Num primeiro plano, esta espontaneidade e displicência será retratada em, “Wild Stream Birds”, ao registar a dança e o movimento no seu estado mais puro e honesto pela captação de imagens de aves marinhas no seu habitat, procurando acentuar o hiper-realismo da intenção de Cunningham ao escolher o tema para “Beach Birds”. O sentido que a peça transmite através da referência a aves marinhas, eu transporto ao espaço intemporal da liberdade. No espectáculo “Beach Birds”, Cunningham orienta os seus bailarinos a executar uma determinada frase coreográfica, com movimentos extremamente bem delineados, geométricos, mas incumbe cada um de a executar de forma espontânea, com uma ordem liberal, o que faz com que a coreografia seja assíncrona ou síncrona por coincidência reportando à realidade inerente ao comportamento das aves marinhas e assim ao naturalismo da sua premissa ‘a dança é o movimento no tempo e no espaço’.“It is all based on individual physical phrasing. The dancers don’t have to be exactly together. They can dance like a flock of birds, when they suddenly take off.” – Cunningham sobre a coreografia “Beach Birds”.
Esta ferramenta de criação foi implementada por Cunningham e Jonh Cage, quer no processo de criação, quer no acto de apresentação do espectáculo, tornando este trabalho, em particular, susceptível a muitas variações: combinação de movimentos e frases coreográficas, luz e até a duração da actuação devido à cadência variável da música. O acaso faz com que cada actuação seja única, ainda que requeira muito trabalho técnico e muita precisão na criação e interpretação das frases coreográficas e musicais. Identifico nesta linha de pensamento criativo uma das mais interessantes ferramentas para trabalhar com aquilo que o destino nos dá, seja um rolo de papel higiénico ou a capacidade criativa de contornar as falsas necessidades impostas pelo consumismo e preciosismos académicos. Enquanto criadora de “performance art”, em particular enquanto artista de site specific, procuro estar em sintonia com o acaso, tanto pela assimilação do espaço como por percepcionar a obra como um ser vivo que carece de necessidades colmatadas pelo criador mas que ainda assim obedece às suas próprias regras e que só assim funciona em plenitude.
Espontâneo mas não improvisado, como pretendo sempre que seja também o acto de performance, e com sinceridade acima de tudo, estou também a confirmar a máxima “Everything we do is music” de Jonh Cage, compositor do tema “Room3” que é também a banda sonora de “Beach Birds” e que será um dos temas musicais desta criação, fundido com acústica real do site specific e intercalado com tema- So Far + So Close de Ólafur Arnalds.